Em uma noite fria, de junho, ele foi deixado na soleira de nossa porta. Fui o primeiro a notar a dor que aquele embrulho de panos sentia, o frio; que eu felpudo da forma que sou também tinha. fiz barulho , e me joguei contra a porta, o homem que me alimentava veio berrando comigo, quando finalmente notou o que estava debaixo do seu bigode farto, mais uma vez gritou, dessa vez com uma das moças que trabalhava na casa.
A negrinha mais jovem ficou da minha altura e segurou o embrulho, que para minha surpresa era da mesma cor dela e do mesmo tamanho que eu possuía, lati animado com a novidade, e isso me lembrou que já tínhamos um daqueles pequenos seres aqui na estância. O filho do bigodudo, que vivia a puxar meus bigodes, já o guri novo não, parecia quietinho, podíamos vir a ser amigos.
E minha previsão concretizou-se, deram-lhe abrigo em troca de serviços, Negrinho como chamavam-lhe, era meu parceiro para todas as horas, nossa amizade crescia dia após dia, ele não ligava para a diferença entre nossas espécies . Ao contrário de tantos outros que vi trabalhar ali, o rapazinho parecia um de nós, tinha a lealdade de meus irmãos, a força de um cavalo, a inteligência de um gato. ele sempre teve oportunidades para ser desonesto , mas sempre seguiu o que o seu patrão/pai havia dito à ele.
Trabalhava de sol à sol, sem tempo para descanso, como eu tinha, optei inumeras vezes segui-lo, na sua rotina diária, que consistia em limpar os estábulos, agrupar as ovelhas (parte na qual sempre ajudei), ordenhar as vacas, alimentar os animais... isso sem contar as tarefas extras que o submetiam.
Acontece que quando o pobrezinho tinha um tempo para o descanso , o maldoso Tobias , filho do patrão, era o seu chefe, abusando sempre do seu poder ordenava Negrinho a fazer coisas humilhantes .
-Engraxar seus sapatos? mas Tobias...
-Nada de mas, seu inútil, quando eu mando fazer algo, já queria que estivesse pronto.
-Mas...
-Devo lembrar-lhe quem manda por aqui?
E assim, o desamparado, aceitava seus castigos cruéis, sem reclamar. Quantas vezes encostei minhas patinhas no seu rosto molhado, lambi suas lágrimas salgadas, e o mais incrível é que mesmo sendo tratado com todo aquele ódio, ele foi um jovem amigável e doce.
Na manhã de um dia qualquer, estávamos dormindo no estabulo, em uma cama feita de palha, quando o estalo do chicote do patrão rasgam o silêncio matinal, balbuciou algo sobre o quão estupido seu escravinho era, como podia ter feito uma coisa tão desmiolada. O menino que havia recém despertado, questionou o que havia ocorrido.
- Como se tu não soubesse, Tobias me contou tudo, dormiste enquanto colocava as ovelhas para dentro do cercado, perdeste todas elas! Com que lã irá te abrigar no inverno?
Não sabia de nada, e o patrão estava tão furioso, que não percebeu que o Negrinho havia dormido no estábulo, sendo assim não poderia ter perdido as ovelhas. Ao tentar explicar isso para o homem, só conseguiu a terrível missão de partir na madrugada, sem nenhum abrigo de lã no corpo, para encontrar as ovelhas.
O menino pôs-se a chorar, por que a vida nunca havia lhe dado chances de ser livre? por que Tobias tinha feito isso com ele? ao passo que ia pensando no ocorrido, ia acariciando minha cabecinha, que apesar de não entender o que se passava naquele confuso mundo humano, estava lá para apoia-lo.
Durante sua missão, sozinho , encontrou 11 das 8 ovelhas. subindo e descendo os pampas, seu corpo cedeu, caiu no chão batendo de frio, os tremeliques percorriam o seu corpo, observei me sentindo impotente por não poder aquece-lo, pensei em quanto gostaria de poder fazer algo para ajudar essa pobre alma, ainda seria capaz de fazer algo por ele.
Desistiu, após 3 dias de busca, com fome e cansados, voltamos com 14 ovelhas, e nos separamos. Fui por uma passagem estreita, que dava para os fundos do galinheiro, e atrás dele, não pude acreditar, avistei 4 ovelhas , ladrei até achar o Negrinho e lhe mostrei onde elas tinham se escondido. Tobias estava junto a elas e deu-se inicio a uma terrível discussão:
-Tobias, por que tu escondeu as ovelhas de mim?
- Para que tu não encontrasse, ora, que pergunta.
- Mas qual o motivo?
- Eu tinha a esperança que tu não fosse cara de pau, de voltar sem elas, mas pelo visto estava enganado.
-Eu quase morri em busca delas.
- Era exatamente isso que eu queria, pois desde que tu chegaste aqui, ninguém mais parece me dar atenção, todos só sabem dizer ''seja como o Negrinho, um menino tão generoso''... estou farto disso, e vai acabar agora.
Eu não sabia ao certo o que aquele menino ardiloso e maquiavélico planejava, mas sai correndo junto ao Negrinho dali, ao chegarmos no salão do centro ouvimos Tobias dizendo:
-Foi ele pai, que roubou o teu ouro que estava guardado, só nós três sabíamos onde era guardado, não iria desconfiar de mim, não é? além do que , ele perdeu as ovelhas, e teve a coragem de voltar sem 4 delas!
Eu percebi, o homem sacar a arma da sua cintura, e apontar para o meu fiel amigo. Jamais teria deixado, que sua vida , tivesse sido arrancada naquele instante. Avancei sem pensar , na mão assassina do patrão, ele tentava disparar contra o Negrinho, e num segundo fatal, saltei bem em frente a bala que teria acertado o coração bondoso do meu parceiro.
A dor me pareceu menor, muitas vezes menor do que uma parcela que o Negrinho havia sentido a sua vida toda, O meu sangue, era mais doce , que suas lágrimas. Se jogou junto ao meu corpinho frágil, e de joelhos ele disse as ultimas palavras que ouvi em minha curta existência:
- Meu cãozinho, meu amigo. és mais corajoso do que eu jamais fui, muito obrigado por tudo.
Pensei por um instante, na maldade de Tobias, sua inveja destruiu vidas, e até a dele próprio, que sempre será lembrado como um rapaz cruel, a quem quer que a minha história seja contada, não quero ser lembrado como um herói, pois o dessa história é o negrinho, só quero ser um lembrete, de o quanto os animais podem ser mais dignos que os homens.
Gi, que texto MARAVILHOSO! Que sensibilidade, que emoção! Muito lindo. Muito lindo mesmo! Parabéns!!!!
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